o papel da carta (episódio 15)

Cartas são sagradas. Nasci muito antes que se pudesse imaginar que as pessoas não mais escreveriam cartas em papel. A minha vida inteira escrevi cartas. É ali, no papel em branco, naquele minuto que antecede a primeira letra que vem um sopro, como se não mais estivéssemos sozinhos na sala e nossa mão escrevesse junto com outra. As cartas tem um significado tão profundo que parecem até coisa de outra era e na verdade são. É um pouco melancólico e triste saber que aqueles blocos de cartas delicados, com papel fininho, quase uma seda pra que a carta não pese no envelope e possa conter todas as palavras de amor, os anseios, as saudades, as novidades e histórias que irão atravessar o bairro, a cidade, o oceano, o mundo inteiro para preencher a alma de outro humano, chegaram ao fim. Tenho uma caixinha de cartas, um presente da mãe. Lá dentro, um rolinho de papel delicado e amarelo, envelopes da mesma cor e um lindo lápis. Esse presente que ganhei ainda criança atravessou comigo os anos na casa e cada vez que faço minhas arrumações, olho essa caixinha, passo um pano de flanela com cuidado e guardo novamente no armário onde estão as delicadezas e as cartas. Ano passado me dediquei a abrir as velhas caixas de guardados e durante três dias estive abduzida no túnel do tempo. Cartas escritas por minha amiga Fifa em Bagé ainda criança; as cartas de Moscou do Alexandre no tempo da URSS; as lindas e detalhadas cartas da Dedé durante os dois anos em que ela morou em Paris nas quais eu podia visualizar e sentir a atmosfera parisiense muito antes de ir até lá; as minúsculas cartas do Felipe, com sua letra quase ininteligível e pequenos desenhos; a carta do Rodrigo em cima da cama no dia em que voltei da viagem do projeto Sud a Sul que encheu a casa inteira de amor por muitos e muitos anos. Por fim, as cartas da mãe, tão amorosa, tão bem humorada, tão mãe.

Hoje, no dia 49 do isolamento, enviei ao Marcelo uma música do Tom Zé que se chama ‘Carta’, pois achei que ele, como poeta, não podia se privar daquela beleza. Lembro de ouvir esta música na sala da casa com minha irmã e chorar. Éramos adolescentes e aqueles versos doloridos de quem vai pra longe entravam peito adentro. Quando ela foi embora essa canção me levava até suas muitas cidades como um bumerangue. Fiquei tão sensibilizada de ouvir de novo a música do Tom Zé, que escrevi uma carta a ele. Não em papel, claro, na minha telinha de led mesmo, por e-mail, porque nós, velhos, nos correspondemos por e-mail. Pedi notícias suas e da Neusa, contei como vai indo a vida no isolamento e que ando escrevendo novos textos em meu blog. Contei do menino e de como o Rio Grande do Sul está diferente, com um povo arrogante e reacionário crescendo nas ruas. Recebi de volta palavras de preocupação com os rumos do país e de muito afeto e fiquei feliz por seguir acreditando na intensidade das cartas, mesmo sem os delicados papéis de seda e seus envelopes com bordas verde-amarelo.

Esse dia 49, dia da triste morte do Aldir Blanc, um imenso poeta, compositor, escritor e ser humano, é também o dia em que um grande ator cometeu suicídio e sua carta de despedida, escrita em papel, foi violada por muitas pessoas. A carta que começou no papel em branco, guiada por uma mão que talvez já estivesse definitivamente sozinha e cansada, era seu último respiro e trazia toda a dor de uma pessoa nos últimos momentos de sua vida. Dor pessoal e intransferível, como deveria ter sido sua última carta.



Deixe um comentário