a menina filha (episódio 14)

Pouco depois do galo do vizinho dar o ar da graça, ali pelas 4h da manhã, começam os bandos de pássaros. Os papagaios são os mais barulhentos e não há como permanecer dormindo em sua passagem. De toda a forma, quem consegue dormir nesses dias? Na ausência do sono, com os olhos grudados no teto lá no alto, os tantos barulhos, as sombras da casa antiga e o vento balançando as folhas no quintal, reflito sobre a morte, as covas abertas, as pessoas doentes e sozinhas e as tristes despedidas na telinha de led dos celulares. Até a morte nos avisa que daqui pra frente é assim que vai ser. Nosso castelinho foi construído com os tijolos do consumo, do egoísmo e individualismo, do ‘ter’ sempre sobreposto ao ‘ser’ até chegarmos às relações vazias do toque, do olhar e da escuta. Somos agora amores de jogos de tabuleiros onde um espera enquanto o outro joga porque há que esperar o delay.

Lembro do momento em que o mundo virou essa centrífuga e me jogou com força pra fora. Eu tentava compreender naqueles dias como seguir em frente porque algo em mim não era igual. Nada na casa parecia meu, a cidade estava irreconhecível e era como se eu pairasse sobre as pessoas, observando, apenas observando suas vidas. Era o ano da copa do mundo no Brasil e a menina, que veio de férias com minha irmã no verão, acabou ficando aqui por alguns meses. Estávamos conectadas em uma transição: ela deixando de ser menina e eu deixando de ser uma mulher jovem e assim fomos jogadas pelo destino numa pandemia particular onde permanecemos em quarentena por um longo tempo, presas uma a outra. Na casa ficávamos seguras e quietas, ela em seu robe branco, com a gata no colo, às vezes doce como menina, às vezes fera enjaulada. Eu, resiliente, abrindo mão da vida lá fora pra reconfigurar a vida dentro: cuidar dela, tê-la, escutá-la, amá-la. Foi ali, entre conversas, danças, desvarios, trocas e nervos à flor da pele que compreendi que o meu lugar no mundo nunca mais seria o mesmo. Ali, em nossas tardes intermináveis daquele inverno de umidade e chá earl gray.

Ela dormia no quarto do filho, numa cama improvisada no chão aos pés da cama dele e toda a noite antes de dormir eu os ouvia conversando e rindo muito. No beijo de boa noite, sempre a descoberta de um novo livro, o entusiasmo do desenho aprendido naquele dia ou a angústia e a raiva tão íntimas dos aprisionados. De manhã, no caminho para o trabalho, íamos os três ouvindo a melancólica Far from any road, da The Handsome Family, seguido de Mrs Robinson, na versão do The Lemonheads. Ela ia na frente, empolgada, balançando a cabeça de um lado pro outro, cantarolando, talvez matando a saudade de sua língua mãe. Há poucos dias conversamos em nossas telinhas de led, animadas. Ela contando do trabalho, da escola que chega ao fim, do verão que se aproxima em Toronto e dos planos pra um dia ter uma casa, talvez um pouco como essa minha velha casa que foi tão dela também. Descubro que nem separadas por uma América Central inteira nosso amor arrefece. Nunca consegui transpor pras palavras o tanto que ela fez por mim. Ela sabe. Eu sei. Nossa imagem caminhando de mãos dadas e olhos vendados experimentando as texturas, temperaturas e sensações em nossos pés descalços rumo ao desconhecido invade minha alma no dia 44 e me faz sorrir.


o guarda-chuva listrado (episódio 13)

Venta em Porto Alegre. Da janela assisto a corrida de bolinhas de papel, sacolas plásticas e embalagens de isopor calçada afora. Estou seca por dentro, meu nariz está seco, garganta seca, os olhos vermelhos e pouco durmo por esses dias. Estamos fechados há 41 dias. Somos poucos, mas temos uma espécie de cumplicidade e nos orgulhamos disso nas redes sociais da bolha, usando muito as hashtags ‘tamojunto’, ‘ficaemcasa’, ‘juntossomosmais’, essas coisas usuais nas pandemias. Temos a ilusão de que assim estaremos bem.

Quando eu era criança contava diariamente os passos até a escola Venezuela, onde estudei por oito anos. Lembro muito bem o hino da escola, que cantávamos nos desfiles de 7 de setembro, no tempo em que as crianças eram obrigadas e desfilar pela pátria, mas não sei como não consigo lembrar o número certo de passos e não me perdoo por isso. Fazia frio nos outonos naqueles dias e todos eles eram mais ou menos como esse que amanheceu hoje, com corrida de bolinhas e folhas secas em redemoinho sobre nossas cabeças. Lembro que uma vez ganhei da mãe um guarda-chuva vermelho e fiquei numa ansiedade extrema pra usá-lo. Todo o santo dia eu botava a cara na janela pra ver se enfim estava chovendo. E todo o santo dia eu tinha a mesma resposta: vento. Neste verão, antes da pandemia, quando minha irmã veio passar uns dias conosco na cidade, ela me comprou um guarda-chuva transparente com listras azul-marinho. Eu mesma escolhi. Desde então nunca mais choveu e ele segue ali, pendurado no cabide da casa, tão seco quanto eu, em compasso de espera.

Lá fora, enquanto os ricos fazem seus experimentos, montam suas encenações e saqueiam e usurpam os direitos da população durante a maior pandemia mundial em séculos, há uma multidão de desempregados e os moradores de rua aumentam em progressão geométrica. Nem os cachorros vira-latas e as pombas tem mais um grão sequer pra catar na rua. Tenho a impressão que as pessoas que andam na rua, por dever ou teimosia, não jogam mais nada fora porque, afinal, se sabe o dia de amanhã. Aqui na casa há dias de todos os tipos, densidades e volumes. Há dias de refúgio, de dança desvairada no corredor, dias de canto e tambores, de ângulos e fotografias, de intermináveis filmes e séries, dias de água sanitária e janelas abertas. Há o dia do menino, que está crescido e que tanto já aprendeu do mundo. Há dias de desistência, de se deixar jogar num cantinho e lá ficar, se arrastando de um cômodo a outro da casa. Há dias eufóricos de pressão e falta de ar, de angústia e ansiedade, de falta de outro ser humano, de vazio de abraços e beijos. E há a espera do dia em que o guarda-chuva de listras azul-marinho irá encontrar a chuva lá fora e dançar com ela as tantas canções dos dias de isolamento.


amor e silêncio (episódio 12)

As palavras da semana do projeto de fotografia do qual faço parte são amor e silêncio. Até o acaso vem com poesia no isolamento. Nesses dias perco a noção de quantas horas permaneço em absoluto silêncio. Não dizer palavras me traz uma espécie de potência que eu não havia experimentado com tanta intensidade, embora sempre tenha tido muita intimidade com os silêncios. Não falar, não trocar, deixar dentro. Perguntas feitas pra um corpo que é só escuta. Respostas que ecoam na caixa do corpo e permanecem vibrando ali. O silêncio e seus desdobramentos me dizem cada dia mais. Já o amor, me fala baixinho, inaudível às vezes. Movimenta-se pela casa em recortes e fotografias esmaecidas que pouco a pouco vão desaparecendo nas caixas velhas de sapato. Outras vezes se esgueira pelas janelas e escapa em direção ao céu em vislumbres de outros dias, acreditando que haverá outros dias depois desses. Mas tudo nele é delicadeza agora, até mesmo a ansiedade de vivê-lo, a vontade do abraço, a urgência do olhar.

Vivi dois terços da vida. O primeiro era quase todo silêncio. O segundo quase todo amor. Nesses dois pedaços, tanto o amor quanto o silêncio falavam muito alto, me deixando atordoada e aflita. Aqui, isolada e quieta, nesse tempo de incertezas, ando pela casa à procura de imagens que me falem sobre amor e silêncio. Vejo o amor preguiçosamente espalhado na cama e sinto o poder do silêncio que habita o quarto. Nada a dizer, tudo dito no gesto e na (in) tensão do olhar. Em outro tempo/espaço percebo o silêncio aflito antes do desaguar e ele transborda amor, é feito de amor e angústia. A única certeza que tenho hoje é a de que as minhas duas fotografias serão feitas de uma simbiose de amor e silêncio. Porque na vida que vejo lá fora pelas frestas da casa não há mais um sem o outro.


fogueirais (episódio 11)

Eu já estava com a roupa de ir quando ouvi o barulho das rodas dos carros no asfalto molhado. Uma chuvinha besta, mas em tempos de vírus, o descaso pode ser mortal. Tinha baixado da rede os discos novos/velhos do Bebeto Alves pra ouvir no caminho, com canções que redescobri este verão, quando minha irmã veio de Toronto e se hospedou na casa. Nossas memórias juntas podem ser muito potentes e assim foi. Desde então, tenho revisitado as tantas vidas em mim. Entre as muitas paredes e muros os momentos cada dia são menos mecânicos. Foi-se o tempo do tapetinho de alongamento de manhã logo após a caminhada no bairro, dos estudos de bateria depois da soneca da tarde, dos escritos com hora marcada numa agenda inexistente. Agora as coisas são como são. Como o desejo que cresce e transborda a cada pequeno gesto em direção ao outro.

Separo livros pra ler e descubro um Rubem Fonseca que não li, um Cortázar pra reler, uma Ana Cristina César pra preencher todo um espaço de poesia que se abre aqui. A casa se transforma em um laboratório de criação onde tudo há e eu me locomovo lentamente, observando cada foco de luz, pequenos palcos capazes de dar status de performance ao espreguiçar da gata, à minha mão em busca do controle remoto da TV, ou ao suave balanço das folhas que começam a cair das árvores no quintal neste início de outono. Os tambores ecoam em diferentes momentos do dia em alfaias de maracatus e na caixa, surdo e bumbo da bateria, compassados e crescentes, anunciando um tempo de tribo, aldeia e celebração de danças e corpos juntos. Enquanto espero, o ponto alto do meu dia é um banho demorado onde posso me perder num longo abraço em mim sob a água corrente e morna do chuveiro.


a janela lateral ou bolinha de papel no vento da calçada (episódio 10)

Desde o dia em que mudei a orientação do meu quarto e coloquei a cama na lateral da janela de onde posso avistar a copa das árvores do quintal, minha vida não foi mais a mesma. Ali eu iniciava uma ventania que levaria pra outras paragens muita coisa que repousava em mim. Verão, 40 graus, feriado de carnaval de um ano qualquer, cidade vazia. Esta era a segunda reforma que eu fazia desde que o povo que habitava a casa se foi. Naqueles dias eu me empenhava em dar nova configuração ao sobrado e enquanto o montador de móveis destilava pregando o roupeiro, eu suava passando três infinitas mãos de tinta a fim de deixar brancos os amarelados azulejos do meu banheiro antigo, com sua linda e velha banheira que pintei de tinta esmalte preta na base para ficar com um ar ainda mais retrô, combinando com o chão de tijoletas vermelhas, originais da casa. Suei toda a aflição e a febre que me consumia. Nos dias que se seguiram eu estava exausta e radiante. Tinha a casa com novas cores, paredes sem buracos ou descascados, novos quadros por todo o lado, e a janela lateral do quarto de dormir de onde mesmo sem poder avistar a igreja eu podia ouvi-la diariamente às 17h, o que me levava voando em velocidade de cruzeiro a tardes de desejo e chocolate Lindt de cereja com trilha sonora do Buena Vista Social Club.

A primeira vez que vi a casa era ainda criança e julguei que fosse uma espécie de palácio, com sua escadaria, os três quartos, corredores, duas salas, cozinha e quintal. Lembro de ficar parada no degrau maior da escada e olhar incrédula pro novo lar, tão lindo e grande. Em busca desse olhar mágico e generoso de criança, faço todas as obras, pinto com diversas cores e combinações, mudo os móveis de lugar, planto e cuido de cada cantinho. Sei de cada rodapé, cada ângulo, cada desnível, cada cupim novo que entra nos degraus da escada. Sei de todos os 50 anos em que estive aqui e sei de cada um que passou, que viveu, que amou e morreu nesse velho sobrado.

Em julho de 1970 ouvi na eletrola a final da Copa de 70, e assim que o jogo terminou, sentei na janela da sala pequena que dá para a rua e comemorei muito, cantando empolgada o hino dos 90 milhões em ação, pra frente brasil e tal, alheia ao AI5, às torturas e mortes da ditadura que se fortalecia no Brasil. Minha mãe não estava alheia, tampouco minhas irmãs que eram mais velhas que eu, mas pra mim, nos meus oito anos, sobrava aquele medo pairando no ar, aquelas conversas veladas e rápidas, aquela atmosfera pesada que eu logo tratava de aliviar ouvindo a Maíra tocar Roberto Carlos no seu Di Giorgio novo ou brincando de bolopé, pião ou estátua no pátio enquanto a mãe lavava a roupa no tanque.

Enquanto espero a pandemia passar, reciclo as memórias que aqui estão e faço disso um jogo onde abro as caixinhas, embaralho tudo e depois vou garimpando. Algumas ficam intocadas, com aquele lustro que vem com a magia da transformação das memórias no cérebro dos humanos. Outras descarto sem piedade, como os muros erguidos, os prédios feios, as grades. Muitas invento, na maior cara de pau. Ficam os discos do Dorival Caymmi, do Tom Zé, dos Novos Baianos e dos Mutantes ouvidos na sala, no tempo em que se reuniam as pessoas da casa para ouvir discos; os banhos de mangueira, os jogos de bola de meia, dadinho, ludo e o futebol no Parque Marinha aos sábados de tarde com o filho; as histórias da velha Europa contadas pela avó, o dia-a-dia com as irmãs, os almoços de sábado com a Dedé e seus maridos ao longo das décadas; as memórias todas da mãe e suas cantorias, seus boleros e tangos, seus sambas e lições ensinadas com amor e delicadeza, com liberdade e escolha. E ficam os amores e suas trilhas sonoras, os pôsteres do Trate-me Leão, do Jimi Hendrix e da Janis e o berimbau pendurado na lateral do velho roupeiro, os amigos na casa pras rodas de violão, a novidade de um novo amor que chega e traz consigo seus mistérios e desejos em tardes preguiçosas no quarto antes da janela lateral, em noites de conchinha e Chet Baker, a vida compartilhada no abrir a porta da casa e a expectativa de entrar com quem se ama pra dentro do lar.

Estamos isolados há um mês. Não vejo o menino há um terço de sua vida, mas sei que ele está crescido e forte, nem aí pro mundo lá fora, achando de verdade que é parte de sua mãe e que está ainda acolhido na barriga. O filho, minha dupla inseparável e dono de tantas memórias na casa onde nasceu e viveu até os mais de trinta anos, anda ocupado em dar ao menino todo o amor possível e tratar de ressignificar esse momento tão impactante na vida de todos nós. Aos poucos vamos anestesiando as saudades e tocando a vida como se fosse uma bolinha de papel no vento da calçada. Pela janela vejo o movimento incessante de carros, ônibus e pessoas que parecem pouco se importar com o vírus e com todos os outros seres vivos que habitam o planeta. A doença pode nos atingir em cheio e tenho medo, por isso volto pra dentro de mim. Antes, tomo o cuidado de apagar as velas do altar que ergui em homenagem a todos os grandes amores que passaram na linha do tempo da velha casa.


urso panda no varal (episódio 9)

Faço as coisas de forma organizada, por assim dizer. Sou adepta da rotina, dos rituais, criteriosa nos hábitos, beirando uma obsessãozinha. Ou compulsãozinha. Disseram que esse comportamento é, na verdade, uma estratégia pra lidar com algo que estaria desorganizado lá nos meus neurotransmissores, o que me parece o de menos numa pandemia. Mas, talvez por isso, elegi que a única caminhada segura é no bairro, que tem ruas vazias e, portanto, quando me sinto absolutamente oprimida e com dor no ciático, ponho minha estratégia embaixo do braço e saio para uma volta. Faço, evidentemente, o mesmo percurso, serpenteando pelas ruas mais próximas, praticamente desertas e subo a lomba do cemitério pra dar um up nos pulmões. Dia desses passei pela escola da infância, com alguma nostalgia, mas não muita. Foi quando vi, algumas casas à frente, um imenso panda de pelúcia pendurado de ponta cabeça em um varal. Demoro um pouco pra entender a cena, as orelhas pretas e aquela cara fofa de panda pendida no varal de uma casa de fundos na Medianeira. Estava magro e abatido, mas vá lá, quem não anda abatido por esses dias, mas ainda assim era um urso fofo e devia ser amado por uma criança. Observo o panda no varal, recém-saído possivelmente de uma solução de hipoclorito, com suas orelhas penduradas, e penso na criança parada ao lado, observando com ansiedade a mesma cena. No olhar dela vejo o meu próprio olhar abrindo a porta da casa para alguém que amo e, sem poder me deixar amolecer num abraço quente, ofereço as boas vindas e o álcool gel.

Subo a rua e ouço o silêncio. O sol, agora amigo, me aquece nos primeiros dias frescos do outono. Vejo um pequeno buquê de flores de plástico deitado na calçada, uma cena um pouco triste que me faz pensar na vertiginosa curva do progresso, na boca escancarada do mercado, nos dias de amor por vídeo, onde insistimos em falar com um quadradinho com tela de led, algo que já estava na moda e a pandemia veio apenas consolidar. Caminho para o outro lado do bairro por ruas que sequer existiam quando eu era criança e hoje estão cheias de casas e até praças arborizadas e agradáveis. São casas bem ao gosto da classe média, com suas garagens para os dois carros da família, portões altos com grades e, se possível, cerca elétrica. Não há ninguém nas janelas. Tampouco nas varandas ensolaradas e floridas. Sigo meu percurso. As ruas de cima desembocam em um lugar muito familiar pra mim, uma casa onde passei com amigas uma boa parte da minha pré-adolescência. Das memórias mais impactantes ficaram os muitos painéis de colagens que fiz em cartolina, pesquisando em revistas, separando e recortando cuidadosamente as imagens mais lindas de natureza, fotografias sombrias e misteriosas, personagens e situações que formavam uma narrativa. Compartilhávamos nossos painéis e ali, nas tardes ensolaradas ou chuvosas dos 13 anos, ouvíamos na garagem Emerson, Lake & Palmer, Jethro Tull, Pink Floyd e a ‘viagem ao centro da terra, do Rick Wakeman com a Sinfônica de Londres, que combinava perfeitamente com nossas colagens e a atmosfera de mistérios e sonhos de quando se tem a vida pela frente. E é pra lá, para um paraíso, praia, estrada ou lago da Finlândia ou do Vietnã que viajo sem amarras enquanto passo ao largo pela jovem Bebê, sentada nos degraus ensolarados da casa na rua vizinha.


o guardanapo de crochê (episódio 8)

O homem sentado no banco do parque é jovem, deve ser bonito, mas está encurvado e acinzentado pela pobreza. Conforme vou me aproximando percebo que ele está encurvado porque escreve algo. Tem nas mãos um lápis sujo e um papel imaginário sobre o banco. Ele escreve. Logo adiante há outro. Está deitado próximo ao estacionamento, em um papelão no chão. De longe a cena me parece a de um homem deitado com uma espécie de estátua de santa na mão. Quando chego mais perto e apuro o olhar, vejo que é uma folha de jornal. Ele lê. Próximo à rótula do Papa, um local sagrado na Medianeira onde um papa rezou uma missa lá pelos anos 80, outra cena me chama a atenção: há uma casa no canteiro central da rua feita com pedaços de compensado, folhas de papelão, lonas, paus e pedras. Em frente, uma mesa de plástico e duas cadeiras. Sobre a mesa, impecavelmente arrumada, um guardanapo de crochê e um vaso. Não sei se me alegro ou me entristeço com a humanidade dessas cenas. Aliás, nesses dias quase todas as coisas me dão esse sentimento entre a tristeza e a alegria. Os muitos dias de clausura e silêncio começam a fazer efeito. A mídia bombardeia notícias, as redes sociais, os grupos de whatsapp, as conversas e até os nossos sonhos vão sendo invadidos por imagens da pandemia. E agora começaram os mortos, as covas, os contêineres, o governo e os políticos fazendo corpo mole para repassar míseros trocados pros trabalhadores e suas famílias, os golpes dos ‘brasileiros de bem’ se proliferando por todos os lados, os banqueiros e os ricos ainda mais ricos. A sociedade adoece. Do outro lado, pessoas ponderam, divulgam ações humanitárias, pequenos e grandes gestos, enchem suas redes com atitudes positivas e fotos onde aparecem fazendo o bem ao próximo, pedem calma e meditação. Afirmam que o mundo não será o mesmo e alguns se arriscam a dizer que o ser humano sairá fortalecido disso tudo.

Sozinha na casa penso que não há lado bom em uma epidemia, onde muitos vão morrer, muitos vão sofrer, muitos vão empobrecer, outros começarão tudo de novo e de novo e de novo, reconstruindo suas vidas como um quebra-cabeças sem fim. Aceito a tristeza, só por hoje. Sozinha na casa eu falo e minha voz atravessa a sala, atravessa as paredes desse prédio antigo e chega lá do outro lado, mas ninguém está lá. Ouvidos não me ouvem. Olhos não me veem. Refaço o caminho. Volto. Quebro mais uma vez todos os muros que já quebrei e eles voltam a se por de pé como heras em paredes velhas.